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Ruas sem asfalto e brincadeiras improvisadas: como é a infância em uma comunidade quilombola

Crianças de comunidade quilombola, em Votorantim, mantêm tradição com brincadeiras Um pedaço de isopor vira carrinho de corrida. O alicerce de uma constru...

Ruas sem asfalto e brincadeiras improvisadas: como é a infância em uma comunidade quilombola
Ruas sem asfalto e brincadeiras improvisadas: como é a infância em uma comunidade quilombola (Foto: Reprodução)

Crianças de comunidade quilombola, em Votorantim, mantêm tradição com brincadeiras Um pedaço de isopor vira carrinho de corrida. O alicerce de uma construção se transforma em palco para uma bailarina. A rua de terra batida se torna campo de futebol. Tudo isso é possível graças à imaginação das crianças que reinventam o brincar em qualquer cenário. Na Comunidade Quilombola José Joaquim de Camargo, localizada no bairro Votocel, em Votorantim (SP), cerca de 40 crianças vivem a infância entre ruas sem asfalto, cercadas pela mata, próximas ao Rio Sorocaba, e marcada por incertezas sobre o futuro. 📲 Participe do canal do g1 Sorocaba e Jundiaí no WhatsApp Crianças da Comunidade Quilombola José Joaquim de Camargo, em Votorantim (SP) Larissa Pandori/g1 Elas são a 5ª geração de descendentes de José Joaquim de Camargo, um ex-escravizado que foi capataz do capitão Jesuíno Cerqueira César, segundo o Mapa de Conflitos da Fiocruz. Entre essas crianças está Mateus Henrique de Andrade Ferreira, de nove anos. Embora tenha se mudado para outro bairro de Votorantim, ele ainda passa as tardes na comunidade após a escola. Na imaginação de Mateus, a rua de terra vira pista de corrida, cenário de brincadeiras com os amigos — que, muitas vezes, também são seus primos. "Tenho bastante amigo aqui. Aqui eu fico mais solto, porque todo mundo aqui é meu parente. Gostava de morar aqui", conta. Mateus Henrique de Andrade Ferreira, de nove anos, improvisa carrinho com pedaço de isopor para brincar em rua da comunidade Fernando Bellon/TV TEM Apesar dos bons momentos vividos, Mateus aponta o que poderia melhorar no local. "A rua aqui é tudo com pedra. Não tem parquinho para as crianças. É cheio de mato. Dá para brincar de pega-pega, futebol, só. Acho que dava para ter uma rua, um campinho de futebol, um parquinho. Eu queria que tivesse um lugar para ensinar futebol para nós", deseja. Mateus e Marcos Paulo brincam com objetos improvisados em rua de terra na Comunidade Quilombola José Joaquim de Camargo Fernando Bellon/TV TEM O mesmo sonho é compartilhado por Maria Sofia Fernandes Sanches, de 10 anos, que mostra habilidade com a bola nos pés, adquirida durante o tempo em que frequentou uma escolinha de futebol. "Eu treinava em um time, mas aí o treinador mudou e tive que parar. Aqui não tem muita criança que gosta de jogar comigo. E também não tem lugar. A gente queria uma pracinha, uma quadrinha, um campo para jogar bola, né?", diz. Como desejo de Dia das Crianças, Maria Sofia tem uma lista de pedidos para o poder público: "Precisava limpar os matos, abrir mais espaço, limpar o barranco, porque é perigoso por causa dos bichos." Maria Sofia, de 10 anos, anseia por melhorias no local onde vive desde que nasceu Larissa Pandori/g1 'O que sei da minha história?' A bicicleta é a companheira de Marcos Paulo Ferreira, de 12 anos, que vive na comunidade desde que nasceu. Ele lembra dos tempos em que não havia iluminação pública. O serviço foi instalado neste ano. "Antes não tinha luz. Quando a gente saía de casa de madrugada, não dava para ver nada. Dava medo andar na rua." Marcos também demonstra curiosidade sobre sua própria história e as origens da comunidade: "O que eu sei da minha história? Quase nada. Mas tenho muita curiosidade. Gosto muito de morar aqui, é meu lugar favorito. É tranquilo, não tem barulho." Marcos Paulo Ferreira, de 12 anos, comemora a conquista de iluminação pública para a comunidade Larissa Pandori/g1 A luta por direitos básicos atravessa gerações. Amanda Tamires Pires Domingues, de 23 anos, passou toda a infância na comunidade. Hoje, é mãe de duas meninas, Alice Mirella e Giovana. Herdou a casa da avó e vê poucas mudanças desde a sua infância. "Muita luta e poucas conquistas esse tempo todo. O que mais incomoda é a falta de asfalto. Quando chove, vira lama, é difícil levar as crianças para a escola. Também podia ter um contêiner de lixo mais perto", relata Amanda. Entre as dificuldades do dia a dia, Amanda carrega o compromisso de garantir que as filhas vivam uma infância plena, ainda que o cenário imponha desafios. "Criança não tem noção de nada. A gente pode estar precisando de muita coisa, mas elas só querem brincar, mesmo no barro. A nossa preocupação é que mantenham essa inocência." Filhas de Amanda Tamires brincam em alicerce de construção Larissa Pandori/g1 Disputa territorial e incertezas Apesar do amplo espaço onde as crianças podem correr, brincar, jogar bola e se divertir, o terreno onde vivem cerca de 100 famílias da Comunidade Quilombola José Joaquim de Camargo é alvo de disputa judicial entre os descendentes do ex-escravizado José Joaquim e o Grupo Votorantim. De acordo com o Mapa de Conflitos da Fiocruz, José Joaquim adquiriu 84 mil alqueires de terra do capitão por 400 mil réis, em uma região rica em minério. A escritura de compra, datada de 2 de novembro de 1874, detalha os limites da área com base nos córregos e cachoeiras da localidade. Atualmente, essas terras se estendem por seis municípios do interior paulista: Sorocaba, Piedade, Sarapuí, Araçoiaba da Serra, Votorantim e Salto de Pirapora, sendo que a maior parte está concentrada nos dois últimos. Em 2008, a Comunidade Quilombola dos Camargos obteve a Certidão de Reconhecimento como Remanescente de Quilombo (CRQ), emitida pela Fundação Cultural Palmares. No entanto, o processo de titulação das terras ainda depende da finalização do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), elaborado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), etapa fundamental para a regularização fundiária quilombola. A situação é agravada pelo fato de que grande parte das terras da comunidade foi grilada e incorporada às zonas urbanas dos municípios de Votorantim e Salto de Pirapora. Atualmente, essas áreas estão ocupadas por plantações de eucalipto, empresas de papel e celulose, pedreiras, a Represa de Itupararanga, universidades, entre outras instituições, comunidades e empreendimentos. Agora, a Comunidade Quilombola dos Camargos aguarda a conclusão da etapa de delimitação territorial, a última pendência para a finalização do RTID. Só então os descendentes de José Joaquim de Camargo, ex-escravizado, poderão assegurar legalmente o direito às suas terras de origem. Comunidade Quilombola José Joaquim Camargo, em Votorantim (SP), ainda tem casas de madeira Fernando Bellon/TV TEM À frente da associação da comunidade, Alifer Noronha Fernandes, de 29 anos, é um dos líderes que assumiram o protagonismo na batalha por direitos e reconhecimento. O envolvimento começou ainda na adolescência, quando ele decidiu lutar por melhorias para o lugar onde cresceu. "Na minha infância, o córrego aqui do esgoto era bem mais aberto. A minha brincadeira era pular de um lado para o outro no esgoto. Graças a Deus agora nós conseguimos trazer algumas melhorias para a comunidade e estamos nesse foco: garantir o futuro das crianças. Porque quem vai ficar aqui são eles, que vão continuar com essa tradição." Agora pai de dois meninos, Alifer lamenta a falta de estrutura para promover atividades educativas e culturais com as crianças da comunidade. "Não temos programas para as crianças. A gente tem professores que querem vir dar aula na comunidade, mas não temos espaço para isso. Até alguns anos, os pais tinham dificuldade em conseguir matricular os filhos na escola, consulta em posto de saúde, porque não tínhamos endereço", aponta o jovem. Pero Henrique Fernandes, de seis anos, adora subir em árvores e se fantasiar de personagens Larissa Pandori/g1 Outra dor que aflige o jovem é a dificuldade de repassar às novas gerações o conhecimento sobre a história da comunidade e da família à qual pertencem. "É complicado. A gente está lutando e, ao mesmo tempo, tentando preservar e transmitir toda essa história, que começa lá em 1874, com a compra das terras e a construção da nossa identidade enquanto comunidade certificada. Estamos nesse esforço de resgatar a nossa cultura." Apesar dos obstáculos, Alifer se esforça para proteger os filhos do sofrimento que ele mesmo enfrentou durante a infância. "Eu tento blindar eles de toda essa dor. A gente faz de tudo para que eles não sofram o que a gente sofreu. Eu mesmo fui morar em uma casa de tijolos depois de maior de idade. Hoje tento proporcionar para eles o que não tive." Alifer Noronha Fernandes, um dos líderes da associação da comunidade quilombola, junto ao filho, Raduan, de cinco anos Larissa Pandori/g1 Infância à margem da sociedade O que estrutura uma criança vai muito além do lugar onde ela vive. São as experiências emocionais vividas nesses espaços, os vínculos familiares e afetivos que moldam seu desenvolvimento. Viver em um ambiente comunitário, por exemplo, pode ser altamente benéfico, como aponta a psicóloga Kelly Almeida. "O essencial para a formação psíquica é a presença de vínculos que acolham, nomeiem e sustentem o sentido da vida cotidiana e isso, muitas vezes, está mais presente nas relações comunitárias do que na estruturas materiais. Elas brincam juntas, criam, imaginam, reinventam o mundo com o que tem. Esse brincar criativo é uma forma de elaboração psíquica é o modo que elas encontram para transformar a falta em potência. Então, mesmo diante das limitações materiais, há um desenvolvimento rico em simbolismo e em pertencimento coletivo. Quando uma criança cria um carrinho de isopor, ela esta dizendo ‘eu existo, eu posso criar, mesmo com pouco’. Esse brincar inventivo mostra uma enorme capacidade de resiliência e elaboração”, analisa. Por outro lado, ambientes marcados pela instabilidade, disputas por território e pela ausência do poder público também impactam a infância, podendo trazer sentimentos de não pertencimento, baixa autoestima e insegurança, alerta a psicóloga. “O grande desafio é o estigma social que ainda pesa sobre essas infâncias. Quando a sociedade não reconhece o valor e a história desses lugares, transmite, de forma sutil, uma mensagem de exclusão. A criança percebe o não dito, ela sente quando há algo em jogo. O medo de perder o lar ou de não pertencer gera marcas psíquicas sutis, mas pode também fortalecer o sentimento de coletividade e resistência, quando vivido em grupo”. “Cuidar da infância é, portanto, também reconhecer o direito dessas crianças de crescerem com dignidade, pertencimento e orgulho de suas raízes”, completa. Quilombolas no Brasil Segundo dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população quilombola do país é composta de 1,3 milhão de pessoas. O Censo apontou ainda que os territórios quilombolas oficialmente delimitados abrigam mais de 203 mil pessoas, sendo 167.202 delas quilombolas. Conforme a pesquisa, até 2022, apenas 4,3% da população quilombola moravam em territórios já titulados no processo de regularização fundiária. Asfalto é uma das reinvicações dos moradores da comunidade Fernando Bellon/TV TEM Veja mais notícias da região no g1 Sorocaba e Jundiaí

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